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REFLEXÕES

Ficar em casa – Estar em nós 

Anita O. Mussi 

 

“O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora”  (Mia Couto)
                                                                                                                                                                  

        pandemia do novo coronavírus é como um espelho que mostra a nossa realidade. A universalidade da crise nos força a perceber nossa interdependência e como somos atravessados pelos acontecimentos do planeta.  

        O processo de mundialização cultural por meio da tecnologia transformou a sociedade e o indivíduo num só. Quando a globalização atingiu as residências a coletividade superou a individualidade causando um esvaziamento, que pode explicar o profundo sentimento de solidão das pessoas hoje em dia.  

       As famílias passaram a se comunicar por mensagens dentro da própria casa, as relações pessoais se tornaram cada vez mais impessoais. Os encontros foram sendo substituídos por relações virtuais. Todo mundo se tornou amigo de acordo com os likes. A grande fraternidade despersonalizou a vinculação. 

       O mundo se transformou num “lugar comum”; que para o sociólogo francês Marc Augé  é um não lugarSegundo ele, os não lugares criam uma tensão solitária. Não é por acaso que muitas pessoas se sentem estranhas na sua própria casa. É a angústia da solidão coletiva. 

      Ao contrário do conceito de não lugar, como um espaço não individual, a idéia de lugar corresponderia, segundo O’Donohue, teólogo Irlandês, a uma intensa individualidade e intimidade consigo mesmo. A solidão assusta quando não há individualidade, um lugar interior, um universo particular; quando este lugar está desabitado, foi esquecido ou, ainda é desconhecido e inexplorado.  A ansiedade é um dos sintomas deste vazio interior 

      Numa dimensão arquetípica, o casal Héstia e Hermes são os guardiões do lugar, representando o espaço sagrado do lar e os seus limites ou fronteiras com o mundo exterior. O lugar de fora tem uma conexão com o lugar de dentro. Enquanto Héstia mantém a chama viva do lar, representada pela lareira no centro da casa, Hermes é o protetor e o guia nas relações com o mundo externo. 

       Hermes como deus dos viajantes personifica o arquétipo do não lugar, da possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, do ir e vir, da impermanência, da relação tempo e espaço no mundo. Para Augé, o passageiro dos não lugares só reencontra sua identidade no controle da alfândega, no pedágio ou na caixa registradora, obedece ao mesmo código que os outros, registra as mesmas mensagens, responde às mesmas solicitações; o espaço do não lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude. 

      Héstia , buscava na solidão e no silêncio interior a calma e a tranquilidade para lidar com a confusão do mundo, não se deixando perturbar pelas necessidades e exigências do espaço externo. Conhecida como uma deusa sem face, por ser representada pela imagem da lareira e não pela sua aparência física, ela é a personificação do arquétipo do lugar interior, da individualidade, como necessidade sagrada. Não por acaso, ao contrário dos famosos heróis e heroínas, Héstia  é uma deusa esquecida ou desconhecida no mundo moderno. 

     O casal divino Hermes/Héstia eram companheiros de jornada, representando forças que não se contrapõem, mas se complementam demonstrando que o estar bem no mundo passa por estar bem na própria casa, no lar interior de cada ser individual. O que está acontecendo fora de nós não nos impede de encontrar  um lugar de paz e conexão interior, assim podemos estar no mundo de uma forma que crie menos sofrimento para nós mesmos e para os outros ao nosso redor.  

     A presença interior de Héstia traz sabedoria para conciliar a vida moderna com a simplicidade e os valores da vida natural, como um processo, denominado pelo sociólogo Maffesoli, de enraizamento dinâmico que é a conexão profunda com a fonte criadora da vida . Contemplar Héstia é uma forma de se proteger contra as seduções dissociativas do mundo que nos expõem e aprisionam nos não lugares, causando ansiedade e sofrimento. 

      Ficar em casa é muito mais que uma necessidade sanitária, é uma exigência de Héstia. Precisamos ativar a energia de Héstia lembrando da importância do cultivo da interioridade através do autoconhecimento, como também, da busca de privacidade e de intimidade. 

      Retornar para o lar em nós é o caminho para acessar nossa força interior e superar o poder das emoções negativas como o medo e a tristeza  que emergem da realidade em que nos encontrávamos antes da pandemia. Nos dias difíceis, o lar é o melhor lugar para se estar. Ficar em casa pode ser uma experiência curativa, onde nos nutrimos, descansamos e nos renovamos diariamente.  

      Os longos dias de isolamento social, tem sido uma oportunidade de nos tornarmos mais conscientes do sofrimento gerado pelo distanciamento e estado de separação, compensando o excesso de extroversão e a angústia inconsciente da perda da individualidade. O senso de empatia tão desejado a tanto tempo finalmente está aflorando, como a chance de olharmos para nós mesmos, para o outro e para o mundo com mais verdade, compreensão, amor e gentileza. 

      O fogo e o círculo são os principais símbolos de Héstia, lembrando as rodas de chimarrão, muitas vezes ao redor da lareira ou do fogão à lenha onde as famílias ou os amigos se encontravam, num ritual de manutenção da fonte afetiva que aquece a alma e mantém a vida. 

      Nossa casa é um lugar sagradoonde nos recolhemos oramos, meditamos; a casa da família de sangue ou de alma é o lugar  para compartilhar nossa vida íntima. Velas, incensos, rezas, silêncio e prosas, livros, receitas, música, jardinagem são experiências que cultivam a presença de Héstia e honram a força desta deusa em nós. 

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